Crônicas por Kelly Garcia

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As floradas de Fortaleza

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.  (…) É certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação”. Cecília Meireles

 

Aprendi com a cronista Erilene Firmino a observar a primavera e a florada dos Ipês amarelos em Fortaleza. Por algum acaso da vida, meu caminho durante todo o tempo em que trabalhei no veículo de comunicação em que nos conhecemos, era a Avenida Domingos Olímpio. Essa movimentada via da cidade tem uma ciclovia inteira dedicada aos “pés de cuscuz”, como muita gente apelida as árvores quando estão com as flores todas ocupando as suas copas.

 

Por conta do meu trabalho como repórter e as crônicas dessa amiga em um tempo em que eu ainda nem sabia que podia ser lida para além das notícias e reportagens, eu passei a reparar na primavera em Fortaleza.

 

Na capital cearense, só temos o período de seca e de chuvas. Aqui, só inverno e verão. Vivendo pertinho do Equador, temos poucas variações nas estações do ano.


No entanto, se você prestar bem atenção, temos tempos que se seguem ordenados para que as ruas se pintem de diversos tons vibrantes. Tem o tempo do flamboyant, com sua flor vermelha com laranja e que cria uns tapetes vermelhos lindos nos meio fios, especialmente no fim da Avenida Bezerra de Menezes, pertinho do Colégio Santa Isabel, perto do mês de junho. Tem umas árvores apressadas nesse ano, quem puder, dê uma olhada na descida da Igreja da Prainha, ali do lado do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura. O chão tá vermelho de flor. 

 

Os pés de jambo também são bem exibidos com suas flores pink. Não sei o tempo certo delas, mas sei que os jambeiros que vi por esses dias já estavam com frutos. Há dois meses, era o tempo dessas flores.

 

Fim de julho e inicio de agosto, é a vez dos cajueiros encherem a cidade de pólen. Com isso, é só esperar pelo aumento nos casos de rinite alérgica. Umas florezinhas miúdas, cor de rosa, capazes de tanto estrago e tanto perfume.


Em agosto e setembro, os ipês rosa e amarelo explodem pela cidade toda. Eu gosto de associar os ipês ao renascimento e à primavera discreta que a Erilene me apontou em um tempo que eu não notava esse tipo de detalhe. Setembro, para mim, é tempo de lembrar que é possível mudar de rota, seja por acontecimentos importantes ou mesmo por ser o mês que antecede o do meu aniversário. 

 

Entretanto, ano passado, só me dei conta da florada dos ipês uns quinze dias antes, ao avistar um ipê rosa florido enorme na praça da Igreja Nossa Senhora das Dores, na Avenida Bezerra de Menezes. 


O ipê amarelo se tornou um dos símbolos da cidade de Fortaleza. Não acho que mereça esse título porque essas árvores não são tão presentes assim por aqui. Pelo menos, ainda não. Bem que eu queria que fossem. 

 

Aqui, a população parece ter o mesmo apego pouco às arvores como têm ao patrimônio histórico. São raras as pessoas que sabem o nome das flores, das árvores. Tanto faz. Qualquer coisa é só plantar um pé de Nim que tem sombra. Eu acho tão estranho.

 

Que tal prestar mais atenção? Esse olhar aguçado me ajuda a perceber que Deus gosta de presentes inesperados. Quem mais poderia me dar flores naturais que nascem em árvores nos meus caminhos nos dias difíceis? Só Ele mesmo é capaz.

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Carta para José Augusto Lopes

A gente não sabe quando vai ser a última vez que vai abraçar alguém. Nem quando será a última festa de aniversário. Será que se soubéssemos, aproveitariamos melhor os momentos? Ou chorariamos a saudade antecipada?

Olho para as nossas fotos no seu aniversário de 2023, Zé e lembro bem do quanto eu fiz questão de estar contigo. O teu abraço apertado, teu carinho, tua gaitada... Eu não poderia perder esse momento.

 

Fecho os olhos e volto no tempo um pouco mais. Bastava você entrar na redação que logo uma rodinha se formava, todo mundo disputando seu abraço cheiroso, seu afeto. Parecia um monte de beija-flor. Tua presença era doce, engraçada. 

 

Naquele tempo, mesmo sem te conhecer, eu me admirei com o tanto que você era querido. Queria chegar perto para entender quem era aquela pessoa "famosa", que todo mundo queria abraçar. 

 

Muitos anos depois, quando a gente se aproximou por trabalhar no portal da Salete, eu entendi plenamente a razão de você atrair tanta gente. Eram as conversas sempre agradáveis, com um toque de humor e ironia. Contigo, soube mais da história de Fortaleza nos anos 1960 e de antes também, porque você estudou no finado e tradicional Colégio São João, era filho único de desembargador e neto de um português dono de um casarão na praça da Lagoinha. 

 

Como cinéfilo e amante da literatura, era uma biblioteca ambulante. Uma fonte incessante de saber. Eu gostava de beber do teu conhecimento. Poderia ter me embriagado mais. Pena que o tempo é tão curto. 

E das fofocas da high society fortalezense? Essas eram as conversas mais divertidas. As traições, as mentiras, as picuinhas... Demos tantas risadas naquele Del Paseo lembrando dos anos da discoteca. 


Aí do outro lado, você estará bem acompanhado, tem o Gilmar, o Oswald, a dona Regina, o Anderson Sandes. De certa forma, pelo menos aí, não terá mais as limitações do seu corpo, que já não estava acompanhando sua energia boa. 

Ah, Zé!... Tu já tá fazendo tanta falta... Espero que alguém apareça com uma biografia tua, à altura de tudo que você desbravou e viveu. Daqui desse lado, eu te mando um abraço cheio de saudades e prometo que vou viver o mais intensamente que eu puder. Ravi mandou um beijão pra você, viu. Te amamos!

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Agora, é brincar de viver!

Como cronista, vivo atenta. Eu sei que tudo pode render um texto. Sou como aquele que procura por moedas no chão pelo caminho e refaz o trajeto para ver se encontra. 

 

Toda segunda é assim. Eu fico procurando um motivo para escrever cascaviando na memória curta o que ocorreu durante a semana. Nesta, decidi que escreveria sobre as sensações ao ouvir Brincar de Viver, ao vivo, pela segunda vez. 

 

Em abril, a escutei na voz do compositor Guilherme Arantes, no Teatro RioMar. Conversador e em recuperação de uma cirurgia recente, o cantor contou no palco vários bastidores de suas composições. Essa em específico, eu não lembro. 

Ao pesquisar na internet, encontrei pouca coisa, mas já algumas coincidências, como o fato de ter sido escrita no ano em que nasci. Foi para um musical infantil que passou na televisão. Essa canção encerrava o programa e foi interpretada por Maria Bethânia. Ao saber da notícia de que ela topou cantar sua música, Guilherme Arantes chorou, emocionado. 

 

No recente show de Caetano e Bethânia na Arena Castelão, essa foi a única música que me fez chorar. Eu, geralmente, saio desidratada de chorar dos shows que vou, seja qual for o artista. Me emociono só de ter a oportunidade de ir, porque essa é uma conquista nova e muito desejada. Toda vez, me sinto um pouquinho mais rebelde e ousada. Um ato tão simples para tantos. Para mim, não. 

 

Desde novinha, a luta era grande. Eu brigava até conseguir que meu pai deixasse. Mais tarde, as brigas deram lugar à apatia, porque eu sabia que não ia adiantar lutar por isso. Eram outros tempos. Passaram. 

 

Chorei ouvindo Bethânia cantar porque prestei atenção na letra e me dei conta de que a diversão na minha vida começou há pouco. Eu ando brincando de viver, mas devido ao pouco costume, eu ainda tendo a ser mais séria. Acho estranha essa liberdade. Sou tal qual um passarinho novo que encontrou a gaiola aberta. 

 

Aprendi que ninguém é o centro do universo, nem eu mesma. A história não tem fim. Consigo sorrir, em meio às lágrimas, quando o mundo me diz não. E ele tem me falado não para muitas coisas nos últimos meses. 

 

Mas eu quero, sim, amar a todos os que eu encontrar pelo caminho. E, se tenho buscado a felicidade tanto e tanto, eu quero ver feliz quem andar comigo. Mesmo que essa felicidade seja para se afastar de mim, para perseguir outros sonhos e outros amores. Não sou gaiola.

 

Para reaprender a sonhar, enfrento o medo do desconhecido todo tempo. Tem dias que o medo me paralisa e me sinto em uma armadilha. O choro vem e eu me liberto e volto para os afazeres. 

 

Estou redescobrindo meu lugar no mundo, me ajeitando no ninho novo que construí para mim e meus filhos. Tenho tentado fazer um caminho novo. Seguir sempre, mesmo que tenhamos desvios, por conta dos nãos que a vida dá.

Fechei os olhos ao terminar de escrever e eles estavam molhados de novo. A música tem esse poder.

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Sobre ser romântico

nos tempos do amor líquido 

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Uma das frases mais icônicas e compartilhadas do escritor Ariano Suassuna é a que ele  assume que se lascou porque era romântico e não sabia não ser isso. Compartilho dessa lamentação do escritor. Se ser romântico já era uma coisa meio esquisita nos anos 2000, quando eu fui solteira a última vez, que dirá agora, Ariano… 

 

Nesses tempos líquidos, o povo só paquera por aplicativo. Encontros quase às cegas, já com coração em brasa de tanta conversa pelo WhatsApp. Mas essas brasas geralmente apagam rápido, mesmo queimando tudo o que puder ser queimado. Tem que ser tudo para ontem. Se os vídeos do TikTok são ligeiros, assim como os reels do Instagram, para quê aguardar? Cuida que a fila precisa andar, meu povo! 

 

No meu caso, os lapsos de memória por conta do cansaço físico e mental retardaram bastante a criação de um perfil nos aplicativos de relacionamento. Fiquei às voltas um tempão tentando lembrar qual era a senha do meu Facebook, do meu email. Nesse tempo, deu logo foi uma crise de ansiedade, porque meu celular já estava nos últimos suspiros e eu imaginava que quando ele morresse de vez, talvez eu perdesse o acesso a todas as minhas redes sociais, porque não lembrava de senha nenhuma. O meu antigo número da Oi também foi desativado e  não recebe SMS. E a preguiça de ajeitar tudo isso? O sono chegava de novo e eu deixava para depois.

 

Impensável paquerar na rua, depois daquela sessão de cinema, no restaurante, na festinha. O povo olha rápido para o outro lado, ou para baixo, no celular. Ninguém se vê. Meus pais se conheceram em uma festinha de criança. Hoje, ninguém tem mais tempo de papear nos eventos. Todos nos seus mundos fechados. Cadê aquele sorriso, aquele brilho no olho diferente, o olhar 43? 

 

Quando finalmente eu me atrevi a criar as contas, a experiência não foi muito satisfatória. Medrosa, eu sempre chamava as pessoas para o Instagram e, na maioria das vezes, eu percebia o descompasso. Ou a conversa morria de vez, ou, então, começava a ganhar outras nuances. As fotos mostravam os gostos pessoais e isso, às vezes, era um balde de água fria. Tanta gente querendo opinar sobre tudo. Outras vezes, era perceptível que a pessoa apenas copiava as mensagens e mandava a mesma coisa para a lista de transmissão dos “contatinhos”.

 

Se a conversa gerasse um encontro, era raro a conexão se manter depois. Dois encontros eram o limite. Quando eu era adolescente, não imaginava que seria tão diferente o mundo dos relacionamentos entre os adultos na quarta década de vida. Naquela época, parecia ser tudo mais verdadeiro, olho no olho, não tinha essa história enrolada que hoje é comum entre as pessoas de meia-idade. Tenho pelo menos três amigas que tiveram que voltar para a terapia após terminarem com os ficantes. Dizem que a dor de um quase é pior do que a de algo que realmente tenha rendido. Parece que a história não fecha. Vira um relacionamento fantasma.

 

Outra coisa que percebi foi que a maioria, homens e mulheres, está traumatizada. Tudo bem que um divórcio é um processo doloroso, é o fim de um sonho de uma vida juntos. E nessa altura da vida, aos 40, quem não se juntou e tem filhos, pelo menos viveu um relacionamento longo. Mas será que o amor é algo tão ruim assim?

 

É, Ariano, eu me lasquei valendo. Tô fora do tempo. Ainda penso em olhar as cores do entardecer, escrever carta, compartilhar playlist, olhar o pôr-do-sol, a lua, as estrelas, o mar. Não me fechei, como eu deveria ter feito. 

Eu geralmente penso: vai que ainda existe alguém como eu no mundo… 

 

A esperança às vezes fala um pouco mais alto. Em outras, a vontade é cauterizar esse coração de gente besta e transformar em inspiração e “sangue nos olhos” para escrever livro novo, passar em um concurso público e malhar pesado para ficar mais padrão. Colocar uma pedra no lugar do coração e enterrar de vez essa esperança.

 

Então, o sono vem, amanhece outro dia e a gente esquece. E, depois, esse buraco no coração lateja de novo. Vou é lembrar dos prazos para os planos que fiz para mim. Focando neles, eu ganho mais.

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Sobre esperança e as reformas recentes

do patrimônio histórico 

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*Ilustração é de autoria do artista visual cearense Vando Figueiredo

 

Ando esperançosa com as notícias de reformas. Mas, nem sempre fui desse jeito. Durante todo o processo de construção do livro Cidades Invisíveis, toda vez que eu via notícias de que algum lugar histórico seria fechado para reformas, eu já me decepcionava por antecipação. Imaginava que nunca mais veria o prédio em funcionamento. Das duas, uma: ou a reforma não seria concluída ou modificaria o imóvel de uma maneira irreversível, a ponto de deixar tudo desinteressante ou estragado.

 

No entanto, depois de ver como ficou linda a nova Estação das Artes, com tantos espaços culturais bem aproveitados, eu passei a ter esperança.

 

Há dez anos, a maior parte de todo aquele complexo era formada por galpões fechados em ruínas, praticamente. Tenho certeza, inclusive, que a maioria dos usuários do transporte ferroviário nem prestava atenção na beleza do prédio. Também, pudera. Ali era só uma estação central, muitas vezes, suja e lotada. Os espaços eram escuros.

 

Hoje, ao percorrer o Kuya – centro de design, a Estação das Artes, com tantas programações bacanas, o Museu Ferroviário e a Pinacoteca, só tenho muito é orgulho de terem transformado a minha velha estação João Felipe naquela lindeza. Valeu muito a pena.

 

A mesma impressão eu tenho da Ponte dos Ingleses. Se ocuparem bem os quiosques e tudo permanecer seguro e conservado, temos um mirante ainda melhor que o anterior. Isso porque o piso está mais seguro pra gente passear e põe ser de cimento, vai permanecer assim por muito mais tempo.

 

Além disso, a escultura La Femme Bateau, de Sérvulo Esmeraldo, lá no fim da parte inconclusa, quando anoitece, fica ainda mais charmosa iluminada.

 

Então, se anunciaram uma grande reforma para o Farol do Mucuripe, eu já quero começar a comemorar. Porque talvez assim eu possa mostrar aquela vista para os meus filhos.

 

Com aquela vista linda e uma revitalização, ali poderia ser até mesmo um polo gastronômico. Tem outros lugares do grande Mucuripe que já são, inclusive. Vide o exemplo do morro de Santa Terezinha, que tem uma muqueca de arraia deliciosa, dizem.

 

O Farol transformado em museu, com um mirante acessível e um polo gastronômico? Será se eu posso sonhar com isso? Ou é uma quimera? O tempo vai dizer.

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Eu quero uma casa no campo

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Quando criança, sonhava em ter uma casa com um quintal na parte da frente e roseiras. Em São Paulo, geralmente, os jardins tinham rosas, muro baixo e grades. Eu passava no caminho do metrô e ficava olhando, tentando decorar para desenhar e colocar na minha redação da volta das aulas, porque, a cada dois anos, passava as férias naquela cidade.

 

Por lá, nem na casa em que eu morei, nem nas que fiquei hospedada havia jardins, embora existisse espaço. A área da frente sempre era ampla, com chão de caquinhos, colocados pelo meu avô, mas empoeirada e suja. Nada de plantas. Era tudo sem cor e triste.

 

Em Caucaia, sempre morei em apartamento. No primeiro, em que vivi por 30 anos, minha mãe tinha algumas plantas na escada, assim como a minha vizinha. Depois que minha mãe foi embora, a vizinha cuidava do nosso pequeno jardim. Eu nunca tinha tempo, nem paciência, porque, desde que me formei, trabalhava em dois empregos. Nos fins de semana de folga, eu dormia o máximo que podia. Na semana, saía bem cedo e pouco olhava para as plantas porque geralmente não floriam. Eram folhagens, como espada-de-São-Jorge/comigo-ninguém-pode.

 

No meu período de sete anos sem trabalhar fora de casa, eu passei a comprar plantas com flores. Nunca sabia o nome das espécies, mas enchi a janela com elas, esperando as borboletas e os beija-flores. Mesmo com roseiras de várias cores, gérberas e cravos, nunca apareceu nada de insetos bonitos na minha janela. Só mesmo as cores e a alegria que eu cultivava devagarinho. Em vez de me preocupar com o futuro, que, para mim, não parecia existir, eu observava as flores e guardava os novos botões dentro dos livros. Me alegrava com a nova roseira amarela, as flores branquinhas do pé de manjericão. E fotografava meus livros entre elas.

 

A falta de sol do novo apartamento matou todas as roseiras. Tentei cultivar cactos e eles mofaram. Para compensar, o condomínio tinha um jardim lindo. As borboletas, assim como as mariposas e vários insetos diferentes sempre apareciam para me visitar, mesmo eu não tendo plantas e morando no quarto andar.

 

Recentemente, eu pedi para a minha mãe algumas mudas para tentar um novo jardim na janela. Todas morreram e eu desisti por um tempo.

 

Vai ficar para quando eu tiver a minha casa dos sonhos no campo, muito provavelmente, na zona rural de Jijoca de Jericoacoara, terra dos meus parentes do lado paterno. Por lá, talvez eu encontre uma nova profissão, possa cultivar flores de outros tipos, fruteiras para atrair os passarinhos.

 

Poderia ser pequena, com alpendre e varanda, para armar uma rede. Com poucos móveis, muitos livros, uns artesanatos para deixar tudo com o meu jeitinho. Uma mesa que tenha uma vista para a lagoa ou um dos rios que banham aquele lugar privilegiado. De prioridades, apenas um notebook, um caderno e um jeito de escutar música.

 

Uma casa no campo, onde eu possa criar minhas histórias e para onde eu possa voltar dos meus passeios, um pouso acolhedor e seguro. Olhando para esse horizonte, eu consigo prosseguir nessa rotina caótica de hoje. Ainda não esqueci do versículo bíblico: Quero trazer à memória aquilo que me dá esperança.

 

Obra é de autoria do artista plástico autodidata cearense Demeilson Ferreira. Desenhista e pintor, tem obras em vários estados brasileiros e países como França, Portugal, Canadá e Estados Unidos.

A minha estação João Felipe 

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É entre lágrimas que escrevo essa crônica. Não sei se pela trilha sonora, do concerto número 2 para piano do Sergei Rachmaninoff ou mesmo da dor que eu reavivei por lembrar que minha Estação João Felipe não existe mais. Não com seu uso de antes.

 

Passei por ela faz uns quinze dias e, cercada de tapumes, ela estava sem o telhado. Senti essa dor fina quando soube que o trem tinha feito sua última viagem até lá, há alguns anos, quando anunciaram que teria outro uso, como um grande equipamento cultural.

 

Assim como para muitos cearenses, que viriam a ser ilustres ou não, a centenária Estação Ferroviária João Felipe foi minha porta de entrada para Fortaleza. Como já disse aqui, eu sempre morei na Região Metropolitana, no município de Caucaia. Meu destino, por mais de 20 anos, foi a última parada antes do fim da linha na Caucaia, a estação Araturi.

 

Daria para vir pra Fortaleza de ônibus? Sim. Mas não foi essa a escolha da minha turma de amigos. Acredito que até hoje o trem seja bem mais barato que o ônibus. Nos meus tempos de adolescente, o preço chegava a ser três vezes menor. E assim, numa tarde de não sei qual dia da semana, eu viajei sem meus pais de trem para comprar folhagens para os arranjos florais que eu estava aprendendo a fazer. Fui até a também centenária Cadeia Pública de Fortaleza, onde funciona a Encetur, melhor lugar para encontrar esse tipo de produto. Esse belo lugar também fazia parte das minhas idas ao Cine São Luiz, tempos depois, porque a mãe de um dos integrantes da minha turma de amigos trabalhava lá.

 

Em 1996, os trens não tinham ar condicionado, obviamente. O projeto do Metrofor só seria anunciado no ano seguinte. Os trens tinham vagões ainda dos anos 1970. Muitas portas não fechavam mais. Outras, sequer existiam, o que facilitava a entrada das temidas pedras, arremessadas por crianças e adolescentes que moravam próximos dos trilhos.

 

Nessa época, uma legião de pessoas usava o trem para garantir o sustento. Pedintes de todas as idades, vendedores de jujubas, pastilhas, bulins e até de pomadas medicinais dividiam espaço com a multidão de usuários do transporte público, além de pregadores do Evangelho de várias denominações e alguns artistas populares.

 

Os principais artistas eram dois deficientes visuais, que atuavam separadamente. Uma mulher que tocava flauta. O outro, um homem que cantava, tocava gaita e pandeiro. Ambos estavam sempre atualizados dos sucessos do momento, mas também utilizavam muito o Roberto Carlos no seu repertório. Depois que esse tipo de show foi proibido nos trens, os dois migraram para os ônibus. Os que eu usava, principalmente. E de certa forma ainda fizeram parte do meu cotidiano por vários anos, como se fosse para que eu não me esquecesse disso.

 

 Nos meus tempos de escola, quando estudei no Colégio 7 de Setembro, só usava o trem para o lazer. O ônibus me dava mais conforto porque me deixava na porta e tinha um intervalo menor entre as viagens, o que evitava atrasos. Já na faculdade e, depois, como repórter, o trem foi o meu principal meio de transporte. Meu primeiro estágio era quase vizinho à antiga estação, na Delegacia do Trabalho. Foram talvez mais de dez anos de viagens diárias.

 

Eu conseguia enxergar a magia diferente que tinha aquela Estação. Para a maioria das pessoas, o desconforto era o ponto principal. Tenho certeza de que a maioria só escolhia o trem por ser mais barato. Quem andou de trem por aqui certamente não se esquece de ser praticamente vomitado pela multidão para dentro do vagão assim que as portas se abriam e nem da corrida em busca de um lugar nos bancos desbotados, seguida de uns sorrisos moleques de alívio, ao finalmente conseguir sentar, para quem era rápido o suficiente, claro.

 

Entretanto, nas longas esperas de 40 ou 50 minutos de quando eu perdia o trem pra casa, eu me perdia em mim e nas divagações de como aquilo tudo era 50 anos antes ou mesmo em tempos mais antigos. A Estação foi fundada ainda no Império, em 1880. São 140 anos de histórias passadas naqueles assoalhos vermelhos, que devem ter tido outras cores e desenhos, claro.

 

Embalada pela MPB das tardes da Rádio Tempo, que era transmitida pelos autofalantes da velha estação, eu percebia que estava sim na atualidade. Mas, bastava olhar ao redor para me transportar para os tempos em que a velha estação recebia os trens do interior. A inspiração vinha ligeira em alguns fins de tarde, bastava olhar ao redor, no rumo de casa ou mesmo para os galpões desativados. Quantos encontros e desencontros aquela estação teria presenciado? E despedidas? Foi por lá que milhares retirantes chegavam nos anos de seca para os Campos de Trabalho. Uma tristeza ter lido isso.

 

Ao iniciar minha trajetória como repórter, uma das minhas primeiras matérias assinadas foi sobre esse trajeto longo, cheio de personagens pitorescos, entre a Vila das Flores, em Maracanaú e Caucaia, com a Estação João Felipe no centro do percurso. Isso faz mais de 15 anos, mas lembro bem de ficar atenta igual a menino pequeno, olhando pela janela para apreciar cada detalhe das paisagens nunca vistas antes para aqueles lados da cidade. Afinal, eu só conhecia do Centro para Caucaia. Nunca tinha ido para o outro extremo da linha. O fotógrafo que me acompanhou, o Tuno Vieira, muito experiente, registrou tudo e chegou, bem enfadado como eu na redação em pleno sábado, depois de uma manhã inteira andando de trem. O trajeto completo demorava mais de duas horas. Imagine o tempo que seria gasto de ônibus, com tantos engarrafamentos pela cidade?

 

No sacolejar do trem nessa década de uso, me rendeu muitas leituras. Até hoje, não entendo o porquê da velocidade maior da leitura e menos enjoo ao ler nesse ambiente tão barulhento. Só interrompi minhas viagens ferroviárias ao ser finalmente atingida por uma pedrada, nos anos 2000. Os trens já tinham vagões mais novos, a administração era do Metrofor, mas as portas abertas continuavam permitindo esse tipo de acidente. O impacto da pedra foi na minha aliança, que ficou marcada e o meu dedo anelar, ferido. Isso protegeu minha filha mais velha, de dois anos, que viajava comigo. Livramento que até hoje agradeço a Deus.

 

Depois que a estação mudou para o espaço vizinho ao Cemitério São João Batista, perdi ainda mais o gosto pelo transporte. Desde esse tempo, estou de luto pelo fim da minha estação. Tem uns seis anos que iniciaram essa obra, que transformará o prédio centenário em um importante equipamento cultural, com museu, biblioteca, pinacoteca e muitas outras novidades, se integrando até mesmo com os prédios do Panorama Artesanal, de onde avistei o meu primeiro Pôr-do-Sol no mar, em 1996. Não creio que uma obra tão grandiosa fique pronta tão cedo.  A certeza que eu tenho é que a Estação João Felipe virou mais um trecho das cidades invisíveis. Isso porque por mais que a restaurem, nunca mais o trem chegará apitando por lá, nem se descerá por aquelas rampas ou compraremos seus bilhetes. Passou essa era.

*A Estação das Artes foi inaugurada em 30 de março de 2022, quase um ano depois da publicação desse livro.

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A beleza do amanhecer

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*A gravura em monotipia “Janela ao Espaço” é de autoria do artista plástico autodidata cearense João Paulo José da Silva. Historiador, trabalha com as linguagens artísticas da xilogravura, monotipia, pintura e escultura em madeira. No Instagram, publica no perfil @jp.artesubjetiva

 

Quantas vezes eu pude contemplar o nascer do Sol? Como foram poucas, consigo lembrar da maioria. Não costumo acordar de madrugada. Quando posso, desperto tarde mesmo. Amo dormir. Então, não é algo costumeiro, mas especial.

 

Fechando os olhos, eu me recordo da época em que o amanhecer pintava o céu de roxo com vermelho escuro e parecia que o mundo estava se acabando. Eram os tempos do confinamento da pandemia e eu chamava meu caçula para ver aquela belezura comigo. Pena que era só a poluição que mudava as cores. 

 

Mais de uma década antes, eu via o sol nascendo já chegando no bairro Antônio Bezerra, quando o horário de verão era aplicado aqui no Ceará. Isso aconteceu pouquíssimas vezes. Nessa época, aprendi a acordar ainda de noite. Eu era adolescente e só Deus sabe o sacrifício que eu fazia para me manter de pé. Um banho bem gelado era indispensável para isso. No entanto, bastava eu encostar no ombro do meu pai dentro do ônibus da Empresa Vitória indo para a escola, que logo eu dormia de novo.

 

Em São Paulo, poucos dias depois da virada do milênio, passei uma madrugada inteira conversando com o vizinho da minha prima sobre todo tipo de assunto. Era a véspera de eu voltar pra casa de uma viagem de dois meses. Essa longa conversa, temperada com alguns beijos, mudou tudo o que eu tinha decidido para a volta e atrasou por mais de um ano que eu reatasse com um dos meus amores mais duradouros. Nunca mais soube dessa criatura. Como teria sido a minha vida se em vez de eu conversar com ele, eu tivesse virado a cara? Não tenho ideia.

 

Com outro, porque eu estranhei a casa diferente, eu vi o sol nascer três vezes. A janela daquele quarto ficava de frente para o sol e não tinha cortina. Tentei dormir de rede e o sol esquentou o meu rosto. Ele acordava antes dos passarinhos e vinha me chamar com um monte de cheiro no cangote para tomar café. Por causa disso, via todas as cores das nuvens, sempre diferentes. Acordava suspirando, cheia de arrepios. O sorriso largo. 

 

Com meus meninos recém-nascidos, o meu cansaço era tão grande que, quando o sol aparecia antes de eles finalmente dormirem, eu não conseguia ter paciência para contemplar nada. Às vezes, a vontade era correr doida. O zumbido no ouvido era um dos sinais mais pesados dessa exaustão.

 

No entanto, o meu amanhecer mais marcante ainda continua sendo o do dia mais feliz que eu tive até hoje, quando vi o sol nascendo por trás da finada duna do por-do-sol, em Jeri, enquanto a lua se punha no mar. 

 

Quantas auroras eu ainda terei para contemplar? Eu continuo dividida entre acordar cedo e dormir até cansar. Mas vamos com calma. Ainda tenho uma lista de coisas legais para fazer pela primeira vez. Amanhecer de novo de frente para o mar, hospedada ou acampando, é uma delas. E vamos em frente.

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O consolo das borboletas

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*A arte é de autoria da ilustradora autodidata cearense Luciana Braga. Professora, pesquisadora, escritora e desenhista. Autora e ilustradora do livro Escrita Infinita. Suas páginas no instagram são @luciana_braga7 e @escrita.infinita

 

Tenho dormido pouco. Comemoro quando consigo adormecer por mais de cinco horas seguidas. A sensação ao abrir os olhos não é de energia, nem de disposição. Parece que fui atropelada por um caminhão. Não, eu não tenho insônia. 

Olho o celular ao lado, que me acordou, checo o horário. Sento na cama, olho para o meu filho mais novo que dorme comigo. Tenho 20 minutos para me arrumar e colocar ele para ir para a escola. Amarro o cabelo, chamo o menino. Cada um vai se ajeitando em um quarto.

 

Começo aquele check-list: escovou os dentes? penteou o cabelo? passou perfume? calçou o sapato? colocou a roupa e o lanche na bolsa? 

 

Olhamos para a janela, as plantas estão murchando. Pena que eu não tenho a mão boa para a jardinagem que nem minha mãe. No apartamento em frente, uma gata siamesa exibe a barriga sedutora no meio das roupas penduradas na grade. A gente se pergunta: será se o gato da vizinha de baixo já notou essa possível namorada?

 

Saímos correndo, tomamos café no caminho. Ao deixar meu filho mais novo na escola, eu me pergunto se essa escuridão vai ter fim. Parece que estou no meio de uma tempestade de novo. As calmarias são raras. 

 

Me afogo em lágrimas, a raiva me toma. Bebo água na escola em que ele estuda, me acalmo, sigo para a passarela imunda, atravesso a rodovia. Nos fones, Gal Costa me diz que a pele do futuro, cicatrizada, será imune ao corte e à lâmina do tempo. Aguardo isso há meses. Parece que essa ferida não sara. Continuo em carne viva.

 

Sigo tentando me acalmar enquanto um rio corre pelos meus olhos. Chego no Centro. Mais um ônibus me leva para o destino final. Talvez os passageiros tenham se assustado com meu rosto vermelho e molhado. Lembro dos olhos assustados que cruzaram com os meus enquanto eu atravessava o vão para a porta do transporte. 

 

Desço e noto a mesma borboleta monarca de ontem de manhã que, tranquila, beijava as flores do flamboyant do discreto jardim da repartição. Ela também estava por aqui na tarde de ontem. Outra borboleta dessas atravessou a rodovia comigo outro dia e mais uma descansava na tela da passarela, enquanto eu andava rápido, perdida em pensamentos. 

 

Se eu não tivesse acompanhado a metamorfose de cinco borboletas dessas na minha casa, talvez isso passasse despercebido. Vou interpretar como mais um consolo nesse caminho dolorido dos últimos tempos. 

 

Antes de voarem, elas ficam no casulo escuro por mais de uma semana. Para saírem do casulo, sangram. Então, um dia, isso passa. Tudo é vário, temporário, efêmero, como disse Chico Buarque. Não há dor que dure para sempre.

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Os atropelos e descompassos dos namorados

para além do mês de junho 

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*A xilogravura é de autoria do artista plástico autodidata cearense João Paulo José da Silva. Historiador, trabalha com as linguagens artísticas da xilogravura, monotipia, pintura e escultura em madeira. No Instagram, publica no perfil @jp.artesubjetiva

 

Junho sempre foi um mês que trouxe muitos eventos. Além das festas juninas, eram dois aniversários para comemorar, o da minha mãe e o do meu irmão. O Dia dos Namorados também era uma espécie de acontecimento dos grandes. Especialmente na adolescência, quando as comparações e os hormônios deixam tudo mais dramático.

Quando eu mudei de escola para uma maior, nesse dia era uma profusão de buquês de flores, chocolates e presentes entregues no horário da aula. Uma vez, tinha até um trio de violinos esperando na porta do colégio. O povo caprichava mesmo para surpreender as namoradas. 

 

Por essa época, eu praticamente só namorei uma pessoa e compartilhávamos a liseira e o fato de não sermos herdeiros. Então, a simplicidade era a nossa marca. Eram cartas manuscritas, poesias, desenhos, flores arrancadas dos jardins dos outros e bijuteiras minimalistas. Eu achava fofo. 

 

Depois, ainda tive uma ida ao cinema escondido, com direito a gazear aula, porque meu pai não me deixava namorar. (Eita, agora ele ficou sabendo…). A árvore na frente da escola era nosso local de encontro, antes da aula. Além do porteiro da escola, todos os motoristas e passageiros dos ônibus que passavam na movimentada Avenida do Imperador, no Centro, no horário do almoço, eram nossas testemunhas. Não sei como não recebi uma advertência e nem meu pai chegou a descobrir.

 

Aos quinze anos, a curiosidade para saber quando eu iria me casar fez com que eu copiasse as mocinhas de outros tempos e arrancasse um fio de cabelo, pegasse uma aliança emprestada e testasse a simpatia de vidência numa fogueira de São João. Compartilhamos a experiência, eu e a minha melhor amiga. 

 

Era só amarrar o fio de cabelo de uma moça em uma aliança benta e colocar em um copo com dois dedos de água em cima da fogueira de São João. Quantas vezes a aliança batesse na borda eram os anos que faltavam para o casamento.

Arrancamos um fio de cabelo nosso, pedimos a aliança da avó dela emprestada e seguimos para a fogueira. Descobrimos quantos anos faltava e deixamos pra lá. E, para nossa surpresa, tudo saiu conforme São João tinha revelado. 

 

Mais adiante, não no mês de junho, eu levei uma queda e caí na lama por pegar uma carona na bike do namorado até a parada do ônibus. Era domingo e as pessoas saíram das suas casas para ajudar a gente a levantar e perguntar se tínhamos nos machucado. Nunca esqueci essa vergonha.

 

Outra peculiaridade eram os nossos locais de encontro. Aos poucos, deixaram de capinar o mato ao redor da calçada e, ao atravessar para o abraço cotidiano antes de ir para casa, sempre levava comigo nas barras das calças da farda um monte de carrapichos. 

 

Transcorridos tantos anos, essas lembranças me arrancam alguns sorrisos. Parece que tem coisas que a gente vivencia para poder ter o que contar ou mesmo para rir nos momentos tristes. Eu ainda acredito que o amor continua belo, leve e divertido, não importa quanto tempo passe.

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Memórias prévias de um cobrador pensante

ou o primeiro livro que eu ganhei de presente

O ano era 1998. Há dois anos, eu era aluna de um dos cinco colégios que mais aprovava no Vestibular. Era muito sozinha. Na hora do recreio, em vez de papear com os amigos, eu preferia ficar na biblioteca da escola, até porque não podíamos levar os livros do acervo para casa. Eu não tinha ficha em biblioteca nenhuma e os livros da minha casa eram enciclopédias. Ler era uma das minhas poucas diversões.

 

Sobre Machado de Assis, eu já tinha ouvido falar. Muita gente dizia que era difícil, arrastado. O primeiro livro paradidático daquele ano era dele, Helena. Eu achei super chato, a protagonista insossa. Naquela época, já gostava mais dos naturalistas. Amava o Cortiço, por exemplo. E gostava muito do Paulo Coelho, o queridinho dos meus amigos de outras escolas.

 

Desde o início do ano, por causa do horário, eu sempre pegava o mesmo ônibus na ida e na volta para a escola. Na ida, no expresso das 6h10, eu passava a viagem dormindo no ombro do meu pai. Na volta, umas 12h30, sempre era a mesma turma esfomeada de adolescentes. Eu, Wellington e Raphael éramos colegas na escola anterior. Estávamos sempre juntos, embora eu estudasse em uma escola e eles dois, em outra. O cobrador fez amizade com a gente. O nome dele era Luís Antônio.  

 

Apesar de trabalhar há muitos anos como cobrador da Empresa Vitória, Luís queria ter feito Letras. No entanto, quando tentou o vestibular a primeira vez, não passou e desistiu. Teve que começar a trabalhar e o sonho ficou esquecido. No entanto, sempre tentava ler em casa e tinha ficha na Biblioteca Pública. 

 

Aos quase 30 anos, amava Machado de Assis e vários outros autores clássicos, como José de Alencar e Eça de Queiroz. O realismo era o seu período preferido na Literatura. Como só eu gostava de ler, ele falava mais desses assuntos comigo.

 

Comendo uma pipoca de isopor, a gente discutia sobre os livros preferidos, no percurso entre o Centro de Fortaleza e o Araturi, em Caucaia. Eu gostava de A viuvinha e Cinco Minutos, do José de Alencar, que li por conta própria e do Guarani, que a escola mandou ler. Já conhecia Dom Casmurro, que pedi emprestado a um amigo. 

 

Ao falar isso para ele, ele logo falou: já sei o que eu vou te dar de presente de 15 anos! Um livro ainda melhor, que é o meu preferido dele: Memórias Póstumas de Brás Cubas. Você vai gostar muito. Não desanime se você achar alguma coisa difícil nele, apenas continue. 

 

Então, numa noite de sábado, o Luís Antônio me entregou o Memórias Póstumas de Brás Cubas embalado num papel de presente. Foi o primeiro livro que eu ganhei de um amigo. Antes desse, eu tinha recebido uns paradidáticos de uns primos distantes de São Paulo. 

 

A edição simples, talvez de sebo, da Editora Ática, com uma capa nada a ver, trazia estampada um cara morto de barba grande e derretendo em cores. A maioria dos clássicos paradidáticos daquele tempo tinha umas capas bem ruins. 

Lembro que, com o meu repertório fraco daquela época, eu precisei reler para entender. Depois de mais de 20 anos, só lembro que das muitas conversas com o leitor, o que é uma característica do autor que eu amo, ironia e a frase que abre o livro. 

 

O Luís Antônio, nunca mais eu vi, embora tenha me acompanhado ainda o Ensino Médio inteiro e o início da faculdade, no mesmo horário de ônibus. Além das conversas sobre Literatura, a gente também falava sobre religião. Eu, muito católica e ele, sem religião definida, sempre questionava minhas crenças. Em alguns dias, eu ficava com raiva. Em outros, ele me colocava para pensar. 

 

O livro, eu devo ter emprestado para alguém e nunca mais voltou. Esse tipo de erro eu aprendi a não cometer mais. 

Nesse mês, uma moça americana disse que esse livro do Machado era o melhor já escrito. Isso fez com que a obra disparasse nas vendas em toda a América e também no Brasil. Só tem entrega para meados de junho, eu conferi. Isso me fez recordar que eu tinha prometido reler, que nem fiz com o Dom Casmurro e Helena, dois dos livros mais fantásticos que já reli na vida depois dos 30 anos.

 

Vou tratar de colocar no meu kindle. Também fiquei curiosa em saber como está o Luís Antônio. Sua casinha na Jurema continua no mesmo lugar. No entanto, nem tem mais cobrador nos ônibus. Tomara que ele esteja bem e ainda goste de ler. Qualquer dia, eu bato no portão dele e agradeço pelo livro de novo.

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O Velho Farol do Mucuripe

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*Esse texto faz parte do livro Cidades Invisíveis, publicado pela autora em 2021 e que permanece à venda por meio do instagram @eukellygarcia. Ilustração foi feita especialmente para a obra pelo artista plástico cearense Vando Figueiredo.

 

Qual a serventia de um farol? Não seria para orientar os marinheiros sobre a posição da costa? Eu conheço um que se tornou praticamente invisível depois que se tornou obsoleto, o Farol Velho do Mucuripe, em Fortaleza. Hoje, ele não passa de um monte de ruínas em que dormem muitas lembranças de namorados que aproveitaram a sua vista para fazer juras de amor, acredito eu. Depois de ter sido condenado pela Defesa Civil e ter desmoronado a sua cúpula, a Secretaria de Turismo do Estado prometeu um restauro para breve. Foi feito um escoramento e a comunidade que ali reside também não deverá mais sair dali. Haviam planejado uma desapropriação, mas desistiram, para alegria de quem mora ali, com uma das vistas mais lindas da cidade.

 

Esses dias, fui pesquisar mais sobre os chamados “olhos do mar”, na visão poética do cantor Ednardo e descobri que temos algo em comum, assim como ocorreu com o navio Mara Hope. Em 1983, quando nasci, ocorreu o seu tombamento histórico. O Farol Velho é a segunda edificação mais antiga da cidade ainda de pé. Perde apenas para a Igreja do Rosário.

 

Estive por lá em 2012, logo quando comecei a ser repórter de rua pela segunda vez. Sonhava em ver de perto aquele prédio. Mesmo sabendo que estava bem deteriorado, até porque era uma matéria de denúncia. Mesmo sabendo que era extremamente perigoso. Eu sabia que aquela era uma oportunidade única. Talvez nunca mais pisasse naquela área da cidade.

 

Quando fui lá, fiquei tão impressionada com a estrutura  que cheguei em casa ainda matutando. Um prédio de 1846 viu toda aquela região ficar totalmente outra. Possivelmente,  fosse só areia e coqueiros ao redor daquele Farol por muito tempo. Na inauguração, era a época ainda do império. Passou boa parte do Segundo Reinado, atravessou muitos mandatos de presidentes e funcionou até 1957, quando foi construído outro, mais moderno, em uma região mais alta.

 

Em 2017, esse outro deixou de ser usado e construíram um ainda maior. O sexto maior do mundo. Um colosso.

Naquele 2012, eu ainda sonhava que poderia levar meu filho para se admirar com aquela vista e aquela arquitetura. Cheguei toda empolgada pra mostrar uma foto e ele desenhou um parecido. Tinha só 4 anos. O desenho deixei no meu Facebook.

 

Cá estou eu, muitos anos depois sem nenhuma esperança de ver de novo o farol velho. Naquele tempo, ainda não existiam as facções e tivemos que ir com a polícia. Há alguns anos, ele perdeu a cúpula e algumas partes desmoronaram, por conta da ação do tempo. Implacável. O afeto que a população do Titanzinho tem por aquele lugar fez com que guardassem o que o tempo tombou, assim como as lembranças de antigas brincadeiras, de amores e segredos. 

Para mim, virou cidade invisível. Ainda bem que há fotos. Pinturas. E que pude guardar, aqui dentro, sua vista.

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Mais um casarão

que irá ruir

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A ilustração é de autoria do artista plástico autodidata cearense Raony Rodrigues Bernardo. Arquiteto e Urbanista, aquarelista, integrante do grupo Urban Sketchers Fortaleza, amante da vida e de tudo o que a ponta do seu lápis consegue desenhar. Suas páginas no instagram são @raony_rb e @bernardoatelie

Quando eu lancei o financiamento coletivo do livro Cidades Invisíveis, há pouco mais de três anos, eu intuía que Fortaleza poderia ter mais perdas em seu patrimônio histórico entre eu concluir o livro e ele ser publicado. Aqui, não se valoriza a história. Fato. No entanto, não imaginava que teria tanto a ser atualizado, inclusive com os locais que eu falei nas crônicas.

 

Estamos na terceira tiragem e o Mara Hope teve um pedaço afundado, o Edifício São Pedro está em plena demolição. A Ponte Velha quase foi botada abaixo e caiu uma pedra dela em cima da cabeça de um motoqueiro que quase o matou.

 

Do Farol Velho do Mucuripe, caiu a parte de cima e os vizinhos levaram pra casa para guardar melhor o pedaço do patrimônio histórico. A Ponte dos Ingleses nem sinal de conclusão da reforma. Já tem sete anos que teve início.

 

Esses locais estão no meu livro. Mas tem outros que não entraram e eu poderia fazer outra edição contando deles. O Casarão das Pianistas Gondim, na rua General Sampaio, edificação dos anos 1920, mesmo em processo de tombamento, foi demolido e virou terreno para ampliar o estacionamento que já existia. 

 

O bangalô dos Jereissati sumiu e no seu lugar está sendo construído o maior prédio de Fortaleza, onde os carros poderão subir de elevador, que luxo! Eu acho muito é brega, vou nem mentir… Isso até que outro mais alto se erga, porque agora é só pagar uma taxa que em Fortaleza se pode construir do tamanho que quiser.

 

Tem locais que permanecem fechados e sem uso, sabe-se lá até quando. A Associação dos Merceeiros, o Hotel Excelsior, o antigo restaurante L’Escale. O sobrado que abrigava o Chopp do Bixiga, pertinho do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, foi fechado de tijolos e deve ser derrubado em breve. Será que os vizinhos também? Nas ruas do entorno, outros sobrados também seguem desocupados. Muitos edifícios novos estão sendo construídos. Dá para ter vista pro mar. Quantos resistirão nos próximos dez anos nessa região da Praia de Iracema?

 

Anunciaram que não dá mais para restaurar o Casarão da Santa Casa, na praça do Liceu. Um dos primeiros bangalôs construídos por Emilio Hinko. Está escorado, com tapumes. Várias plantas nasceram nas brechas. Ali, com seu design hoje ultrapassado, ideia do arquiteto que mais modificou a capital cearense, resiste há quase cem anos. Ninguém sabe quando foi construído. Talvez nos anos 1930, que o Hinko chegou em Fortaleza em 1929. Dizem que foi uma das primeiras obras assinadas por ele.

 

Quantas famílias moraram ali? Quantos casos de amor e desamor se desenrolaram no tempo que o Bar do Fabiano ocupava o térreo? E as amizades dos tempos da escola, as fugas do Liceu, os copos de bebida. Quantos adolescentes terão tomado seus primeiros goles escondidos ali naquele lugar? Será que alguém se agarrou no andar de cima? Terá funcionado alguma pensão alegre? Mas se era da Santa Casa, devia ser lugar de família… Porém, alguém deve ter beijado na boca dentro e fora daquele bar. Suas paredes devem ter algumas boas histórias a serem contadas.

 

Como ninguém que tenha poder suficiente se importa com patrimônio histórico, logo, logo, vira poeira e entulho. E em seu lugar nascerá, muito provavelmente, algum prédio de apartamentos. Quadrado, sem nada demais. Aquela área nem é tão valorizada. Foi-se o tempo da Jacarecanga e não é de hoje. Fica só a dor e a lembrança de quem gostava daquele lugar.

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Dia das Mães no tempo da

Telemar e da Teleceará

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*A linoleogravura “Nossa Senhora” é de autoria do artista plástico autodidata cearense João Paulo José da Silva. Historiador, trabalha com as linguagens artísticas da xilogravura, monotipia, pintura e escultura em madeira. No Instagram, publicada no erfil @jp.artesubjetiva

Domingo das Mães nos tempos da pandemia. Sua mãe mora longe. Como não deixar o seu dia especial passar em branco? Muito fácil! Era só encomendar uma serenata, mandar ir deixar na casa dela um almoço especial e um buquê de rosas. Fazer um delivery de presente. Tudo isso, se você tivesse dinheiro, era facinho de encomendar pelas redes sociais, ao alcance de um botão, com um pix. Depois, uma chamada de vídeo pelo WhatsApp. Pronto!

 

Agora, então, a coisa mais simples é abraçar pessoalmente. Não temos mais restrições sanitárias de nenhum tipo, embora as mudanças climáticas estejam cada vez mais destruidoras e isso pode impedir o reencontro, a depender do lugar.

 

Volte 30 anos. Sua mãe mora em outro Estado. Você, com dois filhos pequenos, sai em busca do único posto da Teleceará no seu bairro que faz interurbano. É um pouco longe da sua casa, mas como é Dia das Mães, você vai assim mesmo. Para sua sorte, sua mãe faz parte do grupo privilegiado de pessoas que têm uma linha telefônica em casa. Consigo lembrar até do número: 578-7856. Que coisa doida é a memória da gente!

 

A mãe com duas crianças é a minha. As crianças, eu e o meu irmão. Ele, nesse tempo, ainda nem andava direito.

 

Lembro que o posto da Teleceará ficava em um apartamento na parte mais alta do Araturi. Era caro e tinha fila. A gente sempre ia uma vez no mês e nas datas comemorativas. Talvez fosse algo como 30 reais por 5 minutos. Não sei direito.

 

Já para o meu pai falar com a minha avó, era só pessoalmente, quando ia na sua casa, no Córrego do Urubu, em Jijoca de Jeri. Para compensar, os filhos de Fortaleza sempre se juntavam para dar um bom presente. Quando chegou a energia, em 1993, compraram uma geladeira, um fogão e um liquidificador. Até pensaram em comprar uma televisão também, mas meu avô não quis. Ele cansava de dizer que enquanto ele fosse vivo, não ia ter televisão naquela casa. E não teve nunca mesmo. Em outro ano, compraram um motor de moer mandioca para casa de farinha. Os filhos eram generosos.

 

Minha mãe, nos poucos Dias das Mães que fui na minha avó Francisca, em São Paulo, isso ainda no meu tempo morando lá, até os cinco anos, me recordo de levarmos um presente simples. Era um conjunto de xícaras, um bule ou mesmo um kit de sabonetes com a colônia que ela mais gostava, a Leite de Alfazema, da Phebo. De comida, ela preparava uma macarronada à bolonhesa bem substanciosa, com bastante carne moída, herança dos Lavorato dela, que ela perdeu ao casar com meu avô espanhol.

 

Vivi todas essas transformações da comunicação entre parentes. Da carestia em ir para o posto da Teleceará para fazer ligação interurbana, passando para a nova era dos cartões telefônicos, quando tínhamos que comprar uns 4 de 50 unidades para tentar ver se dava para falar uns quinze minutos. O meu pai comprou um telefone em 1998, mas colocou uma chave. Tava era certo. Adolescentes têm muito assunto. O primeiro celular, ele só me deu já perto de eu concluir a faculdade e era o dele, usado.

 

Após a gente gastar tanto com ligações tão curtas, chegou minha vez de ter a mãe morando longe. Era ela quem comprava o cartão e ligava para a nossa casa. Foi morar em São Paulo quando se separou do meu pai e ficamos com ele. No nosso primeiro Dia das Mães separadas, ganhei um buquê de rosas em um sorteio. Como não podia mandar para ela pelo correio, fiz um pacote especial com meus melhores produtos do primeiro emprego, como vendedora da Avon. Eu havia acabado de completar 18 anos.

 

Na caixa dos correios, coloquei uns esmaltes vermelhos, o batom Marajoara Encore e o Pop Love de Melancia, que ela gostava, um splash de alfazema, um porta-joias de resina que comprei na Caucaia e fechei o pacote. Ela recebeu uns 20 dias depois e ficou muito feliz, disse. Em outro ano, comprei uns CDs da Clara Nunes e do Roberto Carlos.

 

O tempo passou, os cartões telefônicos deixaram de existir, chegou a Tim sem limites de interurbano e começamos a nos falar dessa forma. Aí, ela veio morar no Ceará de novo e nós falamos todos os dias pelo WhatsApp.

 

Jamais imaginei que a comunicação pudesse evoluir tanto. Não consigo deixar de me surpreender.

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Dragão de sorrisos e lágrimas 

Em 1999, quando o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura foi inaugurado, eu era uma adolescente de 16 anos. Por essa época, eu já amava ir com os amigos na Ponte dos Ingleses. Para isso, a gente passava por dentro dele. Dessa forma, o percurso ficava mais longo e charmoso, especialmente na ponte vermelha de ferro. Não tinha smartphone, então nada de fotos. Uma pena.

 

Nossa turma sempre tinha mais de um violão. Às vezes, nas mochilas, alguém levava um vinho São Brás ou um Rum Montilla, para misturar com Coca-Cola.

 

Quando eu conheci esse Centro Cultural, imaginava que tinha esse nome porque era um lugar comprido, com um rabo grande como os dragões da fantasia. Depois que fui saber quem era o jangadeiro.

 

Na sua Praça Verde, construída provavelmente em cima da velha casa do Mister Hull, que mantinha o tradicional hábito do chá da tarde mesmo em Fortaleza, ouvi o finado Cordel do Fogo Encantado, a Nana Caymmi e a Fernanda Takai, com seu projeto especial para crianças. Naqueles bancos, também conheci minhas amigas que escrevem para a foto histórica com as escritoras cearenses. Ali, começava um novo movimento na minha vida.

 

Essa parte dos shows, eu fiz questão de povoar de novas lembranças, assim que pude. Vi Fausto Nilo, um dos idealizadores daquele lugar, pela primeira vez cantando ao vivo com um show emocionante no ano passado. Depois desse show, tomei o último chopp de vinho do Bixiga, ali embaixo da ponte vermelha. Já tinham anunciado o fim daquele lugar. Dois meses depois, fecharam portas e janelas de tijolos. Aquele sobrado viu tantas versões minhas, acompanhada dos grandes amores que eu tive e pensava ser eternos. Fui feliz ali.

 

Com a Ana Cañas, no Anfiteatro, eu levei uma queda que me deu hematomas nos joelhos e me fez chorar de dor. Mas, quando ela cantou Fotografia 3×4, eu chorei foi relembrando o quanto eu imaginei que nunca mais pisaria naquele lugar, por tantos motivos. As lágrimas deram lugar ao riso depois que encontrei minhas amigas e dividimos tantas histórias hilárias bebendo uma cerveja, no bar do avião. Quase duas décadas antes, minha versão mais jovem e rockeira dançou naqueles degraus de cimento, ao som dos Renegados e do Arnaldo Antunes.

 

Embaixo do Planetário Rubens de Azevedo, único lugar do equipamento cultural do Dragão do Mar em que nunca entrei, eu esperei o dia amanhecer algumas vezes para pegar o meu ônibus pra casa. Por lá, também me abriguei da chuva e curti uma pequena ressaca, depois do meu casamento civil, porque emendei depois do cartório, um show no Cine São Luiz e mais umas apresentações no Amicis e no Bixiga. Só fui para casa amanhecendo o outro dia.

 

Nas salas do Cine Unibanco, passei um ano inteiro conferindo tudo que era filme, depois de ganhar meu passe livre por ser jornalista. Nunca tinha me sentido tão importante na vida, embora o único filme que tenha ficado vivo na memória tenha sido o Lavoura Arcaica, com Selton Mello e algumas cenas bem toscas.

 

As exposições do Museu de Arte Cearense, o MAC, eu adentrei trabalhando num domingo, fiquei admirada com tudo e prometi retornar com todos de casa, o que ainda não aconteceu. Nessa mesma tarde de plantão, ainda tinha o Pintando no Dragão, que reunia uma multidão de crianças com guache e folhas nas mãos.

 

No Café Santa Clara, o mais sofisticado que eu conhecia, deixei muitos 50 reais por dois capuccinos e tapiocas recheadas. Eu acreditava que valia muito a pena apenas por estar naquele ambiente perfumado, decorado e chique. Muitos contos perdidos meus tiveram esse café como cenário imaginário. Hoje, só o que tem é café legal nessa cidade, embora eu continue conhecendo poucos.

 

Quem mais lembra da Livraria ao Livro Técnico, com seus livros caríssimos de arte e suas instalações ao lado do banheiro que já era bastante malcuidado nesse tempo?

 

Hoje, trabalho pertinho do Dragão, o que me possibilita dar umas passadas rápidas por lá, de vez em quando. Desço todos os dias naquela ladeira que já me deu frio na barriga em outros tempos e observo o vermelho das flores dos flamboyants do seu terreno. Pena que sempre tenho medo de atravessar aquela praça deserta a pé, na maioria dos dias.

 

Quero viver o Dragão de novo mais do que antes. Ouvir as canções de quem por ali se apresentar, conferir as peças de teatro, desfrutar da sua vista, construir novas memórias que não deixem os meus olhos marejados com o que já passou. Eu sei que vou conseguir.

 

P.S- *Ilustração é de autoria do artista visual cearense Vando Figueiredo

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No fim, que sabor você pediria?
 

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Obra é de autoria do artista plástico autodidata cearense João Paulo José da Silva. Historiador, trabalha com as linguagens artísticas da xilogravura, monotipia, linotipia, pintura e escultura em madeira. No instagram, publica no perfil @jp.artesubjetiva
 

E se você tivesse como escolher qual o último sabor que provaria, antes de morrer e virar pó? Fiquei pensando sobre isso, ao ler uma notícia sobre pessoas que estavam recebendo cuidados paliativos em unidades de saúde. Alguns pacientes pediram para dar um tempo das comidas servidas no hospital, como últimos pedidos em vida. Um deles quis comer um doce de leite de tablete; outro, carne de porco e um bolo de chocolate.

Perguntei para alguns amigos e se descortinaram muitos sabores, alguns que talvez seriam impraticáveis para o ambiente hospitalar ou de alguém em estado terminal.

 

Na lista de pedidos, além de sobremesa de chocolate, estavam macarronada – a cearense, a tradicional dos imigrantes italianos e uma com molho branco, bacon e camarão – baião de dois com queijo, bolo, café, vinho branco e mousse.

Outro amigo falou que comeria algo com bode ou carneiro. Teve também quem preferisse um super sanduíche mega gorduroso, com carne bem suculenta, coração de frango, vários queijos, molho bbq e batata palha. Uma bomba que apressaria o fim iminente, com certeza.

 

Apesar do que falam sobre a falta de sabor das comidas no ambiente hospitalar, minha experiência com comida de hospital foi bem satisfatória. Quando criança, em São Paulo, minha avó precisou ser internada para colocar um marca-passo. Lembro de ter ido visitá-la e comer um pouco da sua gelatina. Foi muito bom, porque eu amo gelatina. E ainda era de morango, a minha preferida.

 

Depois, quando fui hospitalizada para as cesáreas dos meus filhos, aprendi a comer mingau de Neston. Disseram que ajudaria a produzir leite. Eu gostei tanto, que comecei a tomar de vez em quando em casa e isso me atrapalhou a perder os quilos extras da gestação. Era delicioso.

 

Sou uma pessoa que, em geral, gosta bastante de comer, apesar do sobrepeso. Penso que tenho todo o tempo do mundo. Tenho dificuldades de lidar com a minha finitude. Não fico refletindo sobre a morte com frequência.

 

Entretanto, meu apetite some diante de situações problemáticas. Então, desenganada pelos médicos, talvez eu nem quisesse mais comer. Em vários momentos decisivos, eu preferi deixar a comida de lado. Mas passou e eu voltei à minha vida de comer por prazer, na maioria das vezes.

 

Espero que nenhuma doença terminal apareça tão cedo. Eu não sei qual seria a minha reação diante da péssima notícia de que teria apenas alguns dias  ou meses pela frente. Muito provavelmente, eu estancaria imóvel, chorando até acabar as lágrimas ou tomaria várias decisões precipitadas, já que não teria mais tanto tempo para me arrepender. A comida ia ficar em segundo plano.

 

Teria outros prazeres para resolver, como tomar meu último banho de mar, me despedir de todo mundo que fez diferença na minha vida, para o bem ou para o mal. Iria distribuir alguns beijos e abraços e uns bons tapas e palavrões também. E você, o que comeria, se não tivesse mais tempo?

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Quinze minutos de bicicleta

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Tem horas que a gente precisa dividir a dor em pequenos pedaços, para poder enfrentar. Tive essa lição no meu recente hábito de ir à academia.

 

O instrutor me recomendou uma série de exercícios para as pernas, terminando com esteira e bicicleta. Era domingo, mas eu não queria arregar e fazer feio logo no meu primeiro dia. Fiz todos os exercícios pedidos e pensei que a bicicleta seria super tranquilo. O que são 15 minutos? Pelo menos, no celular, esse tempo corre muito veloz. A gente nem percebe.

 

O que eu não sabia era que o peso dos pedais era grande. Comecei e logo na quarta pedalada comecei a sentir minha coxa esquentando. Fiquei mais ofegante que o normal, mas continuei. O cronômetro digital demorou séculos para sair do primeiro minuto. Quando chegou no terceiro, eu já estava com o coração muito acelerado e suando horrores. Decidi parar um pouco porque fiquei tonta e com vontade de vomitar. 

 

Dali a um minuto, recomecei e fui pedalando até onde aguentei. Era um minuto e meio, o meu máximo. Racionalmente, dividi os 12 minutos restantes em trechos desse tempo. Devagarinho, fui me adaptando e, por fim, consegui concluir os longos quinze minutos que encerrariam o meu primeiro treino em dois anos. 

 

Pode parecer ridículo que uma pessoa de 40 anos não consiga pedalar 15 minutos, mas é isso que o sedentarismo de anos faz com a gente. Eu não quero perder essa batalha. Quero ser saudável e viver uma vida dentro da normalidade. 

Para além dos treinos, na vida da gente, muitas vezes é assim também. É necessário dividir as lutas em pequenos pedaços. O recomeço em uma nova profissão, após anos em uma que não nos satisfaz deve ser feito devagar, passo a passo. Arrumar a bagunça de dias em uma casa desorganizada ou lavar aquela louça acumulada que a gente deixou para depois. Se reconstruir, depois de um coração partido.

 

De passo em passo, mesmo que eles sejam curtos, podemos chegar mais longe. É melhor do que exagerar e ficar lesionado. Parar no meio do caminho, pelo exagero de quem não calculou direito a rota, sai bem mais caro. 

 

Por isso, mesmo que a mudança seja minúscula, eu sigo no meu ritmo lento. Para continuar, pelo menos na academia, eu preciso ter paciência e me planejar. Me abraçar pensando que faço o que dá. Se essa semana, não conseguir ir as três vezes, posso bolar um plano para não falhar na semana seguinte. Mesmo que esse ano eu tenha lido apenas um livro, há a possibilidade de voltar a ler dez minutos diários e melhorar esse hábito. Sempre fui boa em roubar tempo. 

Posso ser menos afoita. Quem sabe assim, o caminho fique mais claro e plano. Devagar, se vai mais longe. Essa lição não é para o mundo, mas para mim.

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Um março atípico

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Dizem que março é um mês sem fim. Entre o dia primeiro e o dia 31, cabem separações e recomeços, revelações bombásticas, empregos que surgem e se despedem, boletos que brotam do chão, doenças vindas da chuva ou das aflições e lembranças que aquecem o coração.

 

No dia 31 de março, recebi minha primeira carta de amor. Era copiada de um livro, cheia de desenhos dos Cavaleiros do Zodíaco e figurinhas de Icekiss. Eu era adolescente.

 

Já bem depois, foi em março também que atravessei a Avenida da Universidade para conhecer meus colegas de Jornalismo. A maior parte segue espalhada pelo Brasil e pelo mundo todo. Por muitos anos, eu quis desistir desse caminho. Hoje, sigo firme nele de novo.

 

Em março, dali a outro bom espaço de tempo, fui mãe de um bebê recém-nascido. Meu primogênito é de fevereiro e por essas épocas, eu andava tentando me acostumar a banhar, amamentar, dormir e sossegar. Isso nunca é fácil, muito menos indolor, mas passou.

 

Foi nesse terceiro mês do ano que comecei na maioria dos meus empregos. Como assessora de vereadora, fui aprovada em uma entrevista após uma prece. Depois, fui aceita para um emprego no jornal. Outra prece atendida, desta vez em um dos meus momentos mais sombrios. Quando já tinha tentado de tudo e todas as portas permaneciam fechadas.

 

Sete anos depois, em outro março sem fim, eu aguardava a minha demissão desse mesmo lugar. Já fazendo outras matérias, porque o jornal era bem diferente do que me acolheu. Eu era mãe de novo e tentava fazer de outra forma o que fiz da primeira vez. Ia criar eu mesma meu filho de oito meses. Mal sabia tudo que teria que aprender nesses anos duros e pesados. Saí outra de tudo isso. Não sei se mais amarga, mais dura ou mole, ou mais triste. Outra, certamente.

 

Nesses anos de pausa, morri tantas vezes. Tanta coisa apodreceu de quem eu era. Porém, a semente germinou e se alimenta dessa fertilidade do que o passado deixou. A experiência me fez mais forte. Tem erros que eu pretendo não repetir. Sigo olhando o horizonte e ele me parece luminoso. O novo me instiga a seguir adiante. Estremeço um pouco de medo, mas o frio na barriga não me paralisa mais.

 

Março dessa vez passou mais ligeiro. Muitos feriados.  A chuva que ia ser escassa, veio abundante. Eu também precisei me refazer, tive outras surpresas. Algumas boas e outras que me pediram para ter mais força. A paciência é sempre difícil, mas tem coisas na vida da gente que só o tempo resolve. Todos passamos por transformações. Parece que estou no meio de várias. Quem não está?

 

O que será que abril trará? Aguardo algo bom porque até aqui, o ano trouxe muitos desafios. Prefiro ter esperança.

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A metáfora do Edifício São Pedro

e do Mara Hope 

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*Edifício São Pedro, os últimos suspiros!, obra feita em Uni Pin 0,5 fine line, nanquim e café líquido sobre papel kraft, é de autoria do artista visual cearense Vando Figueiredo.

 

Quantas certezas você pode deixar de ter em quinze dias? Assim foi com o fim de fevereiro e o início de março desse bissexto ano de 2024. Perdi o chão por mais de uma vez. Depois de uma série de fins de ciclos, familiares e afetivos, o Sol parecia surgir, através das frestas das nuvens cinzentas. E então, na mesma semana, anunciam a demolição imediata do Edifício São Pedro e o Mara Hope cede no banco de areia, dias antes de completar os 39 anos encalhados. 

Nem mesmo o concreto dos anos 1950 do primeiro prédio à Beira Mar conseguiu resistir ao tempo e à especulação imobiliária. Tampouco, o aço do convés do meu velho amigo, Mara Hope, testemunha de tanta coisa importante na minha vida. 

 

Tudo vira pó quando não recebe reparos. Uma hora, a erosão completa o seu papel transformador. Sete andares de concreto podem se transformar em uma montanha de poeira e entulho. As paredes, as arandelas, as banheiras, o restaurante Panela, quem se amou naquelas camas, as risadas, as lágrimas dos hóspedes e moradores. Lembranças esparsas que vão se apagando na memória.

 

Há mais de uma década, pouco a pouco, aquele gigante ia deixando de existir. Nas frestas e rachaduras, nasciam árvores. Virou abrigo de pessoas em situação de rua e em drogadição. Se tornou um sinônimo de descuido.

 

No meu imaginário, a força maior das lembranças se volta para os primeiros anos do meu filho menor, João Nuno.

Quando ele nasceu, iniciamos nossos passeios com o carro recém-comprado. Foi ali que ele viu o mar pela primeira vez. Afoito, já se acostumando com a estabilidade dos pezinhos, saiu correndo direto para aquela imensidão verde azulada que olhava o Edifício São Pedro. 

 

Nosso passeio simples era sempre o mesmo. Deixávamos o carro no estacionamento ao lado do velho edifício em ruínas, alugávamos patins, comíamos pipoca, açaí, cachorro quente e olhávamos o mar sentados na calçada do casarão que hoje é uma loja para surfistas. Fiz isso dezenas de vezes. 

 

Alguns anos depois, eu fui agradecer pela vida e olhar meu Mara Hope de frente para o São Pedro, cercado de um multicor lindo no entardecer. Uma das tempestades tinha amainado, eu senti uma paz e uma esperança de que era o começo de um novo tempo. 

 

Sobre o Mara Hope, para quem escrevi a carta que abre o meu livro Cidades Invisíveis, também vejo o trabalho lento da corrosão, tão comum nos relacionamentos. Aos pouquinhos, o sal do mar corrói o mais forte dos metais. A falta de zelo, aliada ao tempo, transformam tudo. Um navio encalhado, um prédio abandonado, as relações da gente, sejam de amizade ou amorosas. Para muitas situações, não há volta. O mais sensato é passar o trator por cima, esperar afundar. Não tem mais conserto.

 

No caso do Edifício São Pedro, desde que foi anunciado o tombamento, começou um trâmite longo, que findou por ser desfeito. Um patrimônio tombado e “destombado”. Os donos deixaram de se importar com a segurança. Foi só esperar a invasão, para que se tornasse um problema para o Poder Público. Alguém ia ter que resolver. 

 

Tem relações, seja por preguiça ou por comodismo, que recebem esse mesmo tratamento que foi dado ao primeiro prédio com mais de três andares da orla. A gente deixa de se importar. Uma hora, alguém vai ter que resolver o impasse. Que seja o outro. Ele quem vai ficar como vilão. Na maioria das vezes, não tem jeito. A gente vai empurrando com a barriga até que alguém decida pelo fim. 

 

No entanto, uma vez começado o processo, não tem mais volta. Pode até ser construído outro prédio melhor em cima do terreno, mais moderno. No entanto, aquele que existia deixou de ser. Será outro. 

 

Quem irá definir o tempo de permanência do novo será o mesmo zelo, presente nos detalhes. A pintura do afeto, por dentro e por fora do edifício das relações, o óleo do desejo para lubrificar as dobradiças das portas e portões de cada encontro amoroso, o carinho e as palavras que adoçam o cotidiano. Tudo isso tão trabalhoso e necessário a todo laço e vínculo que firmamos. 

 

Ou nos damos ao trabalho desse cuidado permanente ou um belo dia, o prédio desaba. O navio cede e afunda no oceano. E não haverá mais nada além de lembranças, quando os olhos fecharem.

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Ser repórter

 

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* A colagem “Olhar” é obra do artista plástico cearense João Paulo José da Silva. No instagram, ele publica no perfil @jp.artesubjetiva.
 
No colégio, em todo o Ensino Fundamental, eu quis ter várias profissões. Quis ser escritora na quinta série, geóloga na sexta, bióloga na sétima e cantora na oitava. Mas no Ensino Médio, tive que decidir porque precisava ranquear nos simulados e, pensando no quanto eu amava escrever e ler, optei pela Comunicação.  Pesou muito saber que escritores como Clarice Lispector e Nelson Rodrigues eram jornalistas. Talvez fosse um meio para escrever e ser reconhecido.

Passar no vestibular para uma Universidade Pública foi difícil, mas bastou uma vez. Ao chegar no Centro de Humanidades, há 24 anos, vi outros estudantes que, como eu, não tinham muita ideia do que era ser jornalista. Depois de mais de três anos entre cadeiras teóricas e práticas, cheguei finalmente à redação de um jornal para estagiar. Faltavam só três meses para eu me formar.

 

A zoada era grande. Os dedos furiosos nos teclados cinza dos computadores de tubo. Uns 30 telefones tocando ao mesmo tempo, gente falando… Até hoje, eu me arrepio lembrando da gente correndo pra terminar o texto antes do deadline, prazo máximo para a entrega, para não atrasar o jornal. Todo dia, a pauta era uma surpresa. O chefe de reportagem sentado atrás de uma bancada com seus rabiscos e releases para pautar os repórteres.

 

Eu não tinha a menor idéia de para onde seria enviada. Isso dava medo. Comparo  ao artista quando sobe no palco. Tem que ter sangue frio ou nos olhos. Não dá pra ser em cima do muro. Você poderia ir para uma pauta no Jangurussu, para escrever sobre os impactos do chorume na vida das pessoas que moravam perto de onde era antes o lixão. Ou para entrevistar o prefeito ou o governador. Mas o que eu vou perguntar? Te vira, bacana!

 

Era frio na barriga, todo dia subindo aquelas escadas. Fiquei viciada nessa falta de rotina. E em olhar tudo nos mínimos detalhes no caminho para lá, porque talvez pudesse virar pauta.

 

Quando a estagiária era novata, saía com o repórter uns três dias pra ver como funcionavam as coisas. Ele fazia a matéria principal e a estagiária, a coordenada. Assim, nos primeiros dias, eu ouvia atenta a frequência do rádio, pra ver como voltaríamos pra redação, enquanto a Martinha escrevia apressada com os bloquinhos de resto de papel do jornal a fala do entrevistado. Rapidinho, eu aprendi as manhas de deixar minha letra garranchosa para captar tudo. Só não consegui desaprender. Também aprendi que o melhor Pó de Guaraná da cidade ficava na rua Assunção,  e dava tempo de tomar um copão antes de voltar para a redação nas pautas do Centro.

 

Nesses tempos de estagiária, o olho era atento para observar se a matéria sairia assinada no dia seguinte. Todos aguardavam ansiosamente por esse momento de glória. E se virasse capa?

 

Em dois meses como estagiária, consegui as duas coisas, embora tenha sido por um assunto inusitado, entrevistando alguém de quem as pessoas fugiam. A manchete “Carne de jumento vira mortadela no Rio de Janeiro” me rendeu muita zoação. E foi logo a primeira!

 

Depois de passar pela Coluna Social, entre muitas viagens e aniversários que viravam notícia, o que faço até hoje, passei por outras editorias, mas a minha preferida sempre foi a de Cidades.

 

Quando saí do jornal, fiz um freela pra uma revista de decoração e passava as tardes nos apartamentos chiques da Beira-Mar e as mansões das Dunas e do Porto das Dunas, observando. Depois, traduzia meus garranchos voltando pra casa de trem, saindo da Estação João Felipe. Que contraste!

 

O que eu sei é que ser repórter é ver pauta em todo canto. É atender ao celular com um “redação” antes do alô, porque aquele costume já enraizou. É segurar o choro na hora de entrevistar os familiares no velório de alguém que você conhecia e também ao ouvir aquela mãe que nunca saiu do hospital porque o seu filho espera um transplante de coração desde que nasceu.

 

É ficar com ódio por ter sido escalado para trabalhar no Réveillon e, depois de chegar às 4 da manhã em casa, com duas páginas de anotações de bêbados, seguir pra escrever na redação do jornal às 9 e descobrir que vai ter que espremer tudo em cinco linhas.

 

Ser repórter é sentir aquele frio na barriga só de lembrar dessa rotina louca, mesmo passados tantos anos. Uma vez repórter, sempre repórter. Por isso, sigo escrevendo o que pude observar nas entrelinhas das notícias. Tem experiências que sei que não viverei nunca mais e lugares que deixaram de existir. Acabou virando parte de mim e das crônicas que escrevo, como essa, em homenagem ao ofício que tem data comemorativa no próximo dia 16. Parabéns aos colegas que seguem na profissão.

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Carta para o avô espanhol

* A gravura experimental em azulejo é obra do artista plástico cearense João Paulo José da Silva. No instagram, ele publica no perfil @jp.artesubjetiva.

 

Vô Pedro Luiz,

Eu não tive a chance de te conhecer pessoalmente. Sempre carreguei esse apagamento comigo. A curiosidade foi crescendo conforme eu ficava mais velha. No entanto, as pessoas ao meu redor não descreviam muita coisa. 

Quando eu perguntava para o meu pai, no caso, o seu ex-genro, ele se limitava a dizer que o senhor era muito trabalhador. Por isso, conseguiu construir tantas casas, ter carro, telefone, televisão e uma vida confortável em São Paulo. 

 

Esse ritmo frenético de trabalho, assim como o esforço físico, talvez tenham custado a sua saúde, porque sua profissão de azulejista te fez inalar muito pó de cimento e adquirir uma bronquite crônica que te levou embora cedo, aos 60 anos. 

 

Meu tio Edison, seu filho, falou da sua paixão por futebol, você era corintiano. Outra característica marcante era que sempre gostava de presentear os filhos com brinquedos. Minha mãe tinha uma boneca linda, a Beijoca, presente seu e eu ganhei a minha, do meu tio, quando completei seis anos. 

 

Ele me contou também que o senhor chegou pela Bahia, trabalhou assentando pedras em Salvador, depois seguiu para o Chile, voltou por São Paulo e pretendia regressar para a Espanha. Estava com saudades da família. Mas minha vó apareceu e você mudou os planos para se casar com ela. 

 

Eu sempre me perguntei se, ao atravessar o Atlântico, você sabia o que era a paixão. Teria deixado alguma espanhola à sua espera? Ficava inventando roteiros românticos e dramáticos. Porque eu, aos 29, que era a sua idade ao chegar ao Brasil, já era mãe e casada. Como chegou a ser azulejista? Teria trabalhado com outra coisa? Se dava bem com a família da Espanha? Eram tantas perguntas… 

 

Minha vó, eu não me recordo do que tenha me contado. Ela ficou deprimida depois que você se foi. A ponto de passar anos sem sair de casa e depois, a memória foi sumindo, pouco a pouco. Ela partiu muitas décadas depois de você, em 2011. 

 

Em 1984, quando você foi embora dessa Terra, eu era um bebê. A gente se conheceu, embora eu não lembre. Passei a vida olhando a foto do meu batizado, que o senhor era meu padrinho. Eu tinha quatro meses apenas, mas como meu tio falava, deu tempo de se apaixonar por mim, sua primeira neta. Me deu um terço rosa de presente e um apelido impublicável, que eu não vou me expor aqui desse jeito no jornal. 

 

Minha mãe intuiu a sua morte com um sonho premonitório. E numa madrugada de fevereiro, poucos dias depois dessa foto do batizado e do seu aniversário de 60 anos, te faltou o ar e você se foi. 

 

Os anos se passaram e eu, olhando as suas poucas fotos, percebi seus olhos claros, a pele bronzeada, a baixa estatura, os pés e o nariz grandes, o rosto afilado. Não parecia um europeu convencional. De onde viriam esses traços? Eu sequer sabia qual era a sua cidade, a região da Espanha em que o senhor nasceu, muito menos porque veio para o Brasil ou se voltou para sua terra natal alguma vez para visitar seus parentes. 

 

A primeira investida para descobrir alguma coisa a mais sobre a sua trajetória, eu fiz pouco depois que me formei em jornalismo, em 2005. Em uma viagem rápida para São Paulo, entrevistei o seu único amigo vivo, também espanhol, seu Alfredo. Com ele, soube de qual porto vocês viajaram, o de Vigo, qual era a sua região, Pontevedra, na Galícia e que tinha trabalhado na construção de Brasília. Meu avô Pedro Luiz, era um dos muitos candangos que construíram a capital federal… Me surpreendi, nunca ninguém tinha me dito. 

 

Nessa  época, eu tinha 21 anos. Fui perguntar sobre o senhor por curiosidade e porque a minha vida tinha dado uma mudada e eu pensava que eu poderia aproveitar meu curso de espanhol para ir conhecer o país e fazer o Caminho de Santiago. E a sua cidade estava no roteiro desse famoso roteiro peregrino.

 

Porém, minha vida mudou de tal forma que essas ideias se tornaram totalmente inviáveis. E eu segui curiosa e sem ter mais ninguém para perguntar sobre sua vida. Como eu não sabia de quase nada, ficava me perguntando se o senhor no convívio com a mulher e os filhos era ausente, calado demais, bravo… Minha mãe sempre muda o assunto, quando eu questiono. Parece que não gosta de lembrar. 

 

Em uma tarde tediosa e quente de fevereiro, em 2016, quando eu não trabalhava mais com jornalismo e me dividia entre fazer comida, amamentar e fazer faxina, me deu uma vontade louca de colocar o seu nome no google e ver o que eu poderia descobrir.

 

Essa busca alucinante me tomou a tarde e boa parte da noite. Um link levando ao outro, eu resgatei o seu passaporte, sua identidade e descobri o seu navio, que aportou na Bahia em 1953. Descobri também que tinha se hospedado em uma pensão na Vila Mariana, em São Paulo.

 

Entre os textos que achei no google, procurando pela cidade e o sobrenome, encontrei Por Amor, um romance escrito por uma brasileira, que se passava na mesma região em que você nasceu. Andrés, mesmo nome do meu tio falecido bebê, era o patriarca. Além disso, a autora tinha um sobrenome parecido: David. Fiquei cabreira, senti os sinais.

 

Entrei em contato com a autora, Goreth Kling, e descobri que ela conhecia a parte da sua  família que ficou na Espanha. A sua irmã, Maria Doviso, que recebeu cartas e não sabia ler em português, só alisava o papel, dizendo do irmão que foi para o Brasil e nunca mais deu notícias. Ela sabia que você tinha tido dois filhos, Edna e Edison, porque o meu tio escreveu para ela. 

 

Por meio da Goreth, vi a casa de pedra onde você nasceu, em Carracedo, na Galícia, e soube do dom para o desenho dessa parte da família, porque tem vários artistas e designers. O marido dela, Eduardo David, é seu parente. O livro Por Amor foi escrito em homenagem à mãe dele. 

 

Com a Goreth, eu soube que você vem de uma longa linhagem de homens que se chamavam Pedro Luiz. Eu sempre achei Pedro um nome lindo, mas como meu pai também tem esse nome, não achei legal colocar com Neto no final. Meu filho homem se chama João Nuno, seu bisneto. Luiza coloquei por outra razão, mas acabou homenageando você sem querer. A nossa família Garcia continua pela minha descendência e do meu irmão. Por ele, tem o bisneto Ravi Miguel. O Doviso acabou nos seus filhos, que não repassaram para os descendentes.

 

Vô, eu continuo sem saber muita coisa sobre o senhor. Não sei que heranças físicas eu tenho que se relacionem contigo. Já o meu irmão é a sua cópia. Pude atestar nas fotos do seu casamento com a vó Francisca. Sorte grande, a sua. Minha vó era muito linda, aos 35 anos, quando vocês se casaram. Eu me pareço mais com ela, modéstia à parte. Próximo dia 7, você faria 100 anos, meu tio me contou. Por isso, essa carta. 

 

Quem sabe um dia eu descubra mais alguma coisa ou possa pisar no chão que sustentou os seus pés em sua infância. Ou posso inventar uma história sobre você. Será se eu consigo?

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Ouro do sertão

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Obra Mandacaru, em acrílica sobre papel duplex, é de autoria do artista plástico autodidata cearense João Paulo José da Silva. Historiador, trabalha com as linguagens artísticas da xilogravura, monotipia, pintura, escultura em madeira e gravuras experimentais. No instagram, publica no perfil @jp.artesubjetiva

 

Qual a sua lembrança mais marcante da infância? Na minha, teve muita coisa boa e ruim. Assim é com todo mundo, eu acho. Nunca fui criança de brincar muito na rua. Nasci em São Paulo capital, onde vivi até os cinco anos. Já nesses tempos, era perigoso brincar na rua, especialmente nos dias de semana. Corria o risco de ser atropelado, sofrer um rapto ou coisa pior. Por isso, criança, era do portão para dentro.

 

Eu gostava de ficar olhando pelos buraquinhos das grades do portão miúdo. O muro era baixo, mas eu, com meus cinco anos, não dava conta de pular. Ficava só olhando os carros passando. Como minha mãe é de lá, minha rotina não mudou muito depois que passei a morar em Caucaia, no Araturi, onde passei 30 dos meus 40 anos. 

 

Meu apartamento era pequeno. Então, eu tentava me apoderar ao máximo dos lugares abertos que eu visitava, das paisagens, dos cheiros, das plantas, de tudo. Eu me agarrava às cidades para onde eu viajava para que eu pudesse voltar sempre que eu quisesse, na imaginação. Avistá-las, quando fechasse os olhos.  


Foi assim, me agarrando aos flashes, que fiquei marcada pela dureza de Apuiarés, no sertão cearense. Fui naquele lugar poeirento uma única vez, talvez com uns nove ou dez anos. 

 

Chegamos na casa que nos receberia com o sol alto. Algumas crianças e adolescentes estavam no alpendre debulhando milho. Para mim, uma brincadeira que feriu minhas mãos finas de criança da cidade e logo desisti.  

Banho era de balde, como em qualquer interior. Só que nesse lugar, em vez de cacimba, a água era do rio. Para trazer, tinha que andar mais de uma hora com os baldes na cabeça. 

 

Descobri isso depois de desperdiçar a terceira caneca de água, acostumada que era à fartura dos chuveiros e mesmo do tanque lá da Jijoca. No interior do meu pai, a gente enchia um tanque grande com a água da cacimba, para tomar banho e lavar roupa. Não tinha problema se derramasse, era até diversão.

 

Enchi meus olhos de água do carão que eu levei, mas depois entendi. Água é ouro no sertão. Tem que economizar o máximo que puder. 

 

A senhorinha dona da casa, já com mais de 60 anos, era quem andava até o rio para buscar essa água preciosa. Tinha muita razão em brigar comigo. Eu não tinha noção do que era esse trabalho duro. 

 

Foi lá em Apuiarés também que vi um capote pela primeira vez, essa galinha que parece pintada à mão e fala do nosso cansaço, com seu modo de cantar: tô fraco, tô fraco. 

 

Depois desse carão, fiquei fraca mesmo pra chorar e foi o que aconteceu quando eu vi a galinha do almoço sendo morta e tratada para a gente comer.  

- “Coisa fraca é menina da cidade. Qualquer coisa, chora e ainda é lesada. Será que se cria?”, escutei sem querer.

 

O sofrimento e as privações, às vezes, geram gente bruta, incapaz de um carinho. Era o caso dessa senhorinha que me recebeu. Mas quem vai condenar? Cada um dá o que tem. 

 

Não dormimos naquela casa e seguimos viagem de volta para Fortaleza ainda de dia. No caminho, a estrada era muito esburacada, não tinha asfalto. Piçarra. Sei que o carro do meu pai, um Corcel II, deu o prego em Pentecoste. Não aguentou o sacolejo. Acho que voltamos apertados no carro do meu tio, enquanto meu pai consertava.

 

Entrou para a minha coleção de lembranças. Essa não é boa, mas serviu pra eu ver na realidade o cenário dos meus livros preferidos de hoje, os regionalistas. Das recentes leituras, tem Outros Cantos, de Maria Valéria Rezende e A Casa, de Natércia Campos. 

 

A crônica foi digitada enquanto eu escutava “Onde canta o sabiá”, do Mastruz com Leite, para dar uma força na inspiração. A música sempre me ajuda a avivar as recordações e era com a trilha sonora dessa banda que a gente viajava de carro na minha infância.

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Quando os bem-te-vis espantaram

os fantasmas

Depois do meu casulo se abrir, no primeiro de janeiro, como eu contei aqui na primeira crônica, passou apenas uma semana para que os voos ficassem mais lentos. A vida é assim, uma montanha russa, tem um gosto agridoce. Eu já aprendi um pouco sobre isso nessas quatro décadas de vida.

 

Por uma tontura, minha mãe caiu de costas e quebrou uma vértebra, na coluna lombar. Para tratar a dor, passamos duas noites internadas no hospital referência de trauma do Ceará, o Instituto Dr. José Frota, um lugar cheio de emoções fortes, que merecia uma série de crônicas. Ela teve alta, graças a Deus, já está em casa e consegue se movimentar.

 

Com esse acontecimento, precisei modificar minha rotina e retornei ao apartamento onde morei por 30 anos para dormir com ela. Lá, reencontrei meus fantasmas, o que me deu alguns calafrios. Tem lugares em que as paredes, mesmo pintadas com outras cores, são impregnadas com a cartela de tons de outros tempos. No meu caso, uma boa parte dessas cores e desenhos, eu queria esquecer. Porém, nem sempre a mente obedece a gente.

 

Naquele pequeno espaço de 52 metros quadrados, eu cresci, chorei, gritei, ri, amei, tive medo. Ao me encostar na janela, eu consigo lembrar de quando assistia Tieta e pulava para ver o que tinha do outro lado porque não alcançava o batente.

 

No mesmo armador em que coloquei a rede nova para dormir, eu coloquei outras redes para fazer adormecer os meus dois filhos incontáveis vezes. A janela da sala eu preenchi de uma ponta a outra com minhas roseiras quando eu tentava colorir o meu desânimo nos meus dias mais cinzentos.

 

No quarto da frente, dormiam os meus pais quando eu era criança. Quando me casei, herdei aquele cômodo, que depois se tornou o quarto dos meus filhos. Hoje, minha mãe pegou o quarto de volta.

 

Da escada, hoje muito desgastada, eu usava os degraus como os cômodos para a minha casa imaginária da Barbie. Apostava uma perigosa corrida com as crianças dos vizinhos, o que me rendeu alguns machucados.

 

Adolescente, ouvi e respondi muitas declarações de amor embaixo daquele teto. Toda vez que passo por ela, os fantasmas dos amores perdidos reaparecem. Surge até mesmo o da minha vizinha, que era a minha figura materna por mais de uma década e que dividiu aquela escada comigo nos 30 anos em que morei por lá, a dona Maria das Neves Teles, que o Alzheimer levou há uns seis anos. 

 

Depois de duas noites mal dormidas naquele apartamento que me viu crescer, eu saí meio chorosa para resolver a matrícula da minha filha. Atormentada pelo medo de me acidentar e ter que ir para o IJF de novo, dessa vez como paciente, porque precisei pegar um moto uber, a minha mente vagava enquanto os olhos molhavam e escorriam. Eu me sentia só. Não tinha ideia de como ia administrar tantas questões. Vivo equilibrando um monte de pratos. Mas quem não é assim?

 

Ao chegar no trabalho, me surpreendo com dois pequenos passarinhos piando na grade da repartição. Seus bicos escancarados e as plumagens meio bagunçadas denunciam que devem ser pássaros crianças. Terão caído da árvore?

O motorista do aplicativo diz que eram sanhaçus. Mas, com o peito amarelo, deveriam ser bem-te-vis, o que confirmei quando os pais deles apareceram com comida. Um trouxe uma semente e o outro, um pequeno besouro.

 

Com essa cena simples, eu me esqueci por um instante do choro, das preocupações e segui sorrindo para mais um dia de trabalho. É, Deus sabe como mudar meus pensamentos e espantar meus fantasmas. Ainda bem.

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Sobre listas de Ano Novo

e casulos de borboleta

“Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre”.


Carlos Drummond de Andrade in Receita de Ano Novo (1977)


Depois de muitos anos sem realizar as metas pretendidas, dei um tempo nas listas. As minhas, ano após ano, por mais de uma década, incluíam perder peso, fazer exercícios, cuidar da alimentação, fazer menos dívidas e ler mais. 
Mesmo querendo realizar, achava que era lugar comum. Eu era só mais uma correndo atrás do mínimo e, mesmo assim, não chegava onde queria. Evitava pensar no futuro, porque era sempre a mesma coisa. Enquanto o ano escorria entre os dedos, eu refletia, calada, com a auto sabotagem de sempre.

 

"Para que cuidar da alimentação nessa vida tão sem graça? Eu ando tão cansada… Esse chocolate não vai me fazer mal, é só hoje. Amanhã, eu começo os exercícios. Essa parcela é pequena, não vai fazer diferença no orçamento. Depois eu leio, tô com tanto sono" - era o que eu repetia.

 

No dia 31 de dezembro, era o mesmo peso na balança, o dinheiro curto, o mesmo jantar, as mesmas pessoas, as discussões pelo prato que eu fiz, a indecisão pelo que fazer no dia seguinte, o primeiro do ano. E tudo voltava ao começo, como um eterno retorno triste. Parecia a Caverna do Dragão, aquele desenho animado que quem tem a minha idade assistiu na infância. A gente pensa que vai dar certo e, no fim, continua tudo igual. Cadê o Mestre dos Magos? Sumiu de novo…

 

Esse marasmo permaneceu até chegar a pandemia. Um ano sem escola para as crianças, convivendo com problemas psicológicos, rotina de homeoffice pesada. Estresse, medo do futuro. As metas de sempre foram esquecidas e eu focava em vencer mais um dia. "Deus, me ajude a não morrer hoje". Essa era a oração que eu fazia em silêncio.

 

Quando a pandemia amainou, algo tinha se quebrado. Eu tinha fome de viver. Não aguentava mais aquele cinza indefinido. Queria cores mais fortes e fui forçando a velha casca que me circundava. Precisava correr o mundo, falar com as pessoas, abraçar, ouvir histórias reais, olhar nos olhos, ao invés da ligação de vídeo e as mensagens no WhatsApp. Sentir o frio da barriga que toda primeira vez traz consigo. Eu era outra, o mundo também.

 

Em vez de querer perder peso apenas para agradar o mundo, eu fui pensando que poderia ter mais tempo com os que quero bem, se tivesse mais saúde. Que poderia ter mais disposição para passear e me divertir. E seria aos poucos, sem dietas malucas. Eu não precisava de tantos livros assim, para quê colocar mais um na estante? Preciso poupar e comprar coisas mais urgentes, como roupas e calçados. Eu posso ler assim que acordar por 15 minutos. Na hora de dormir, eu já vi que não consigo. Vou mudar a estratégia.

 

Como eu mudei, tudo ao redor foi se modificando junto comigo. As oportunidades de melhoria começaram a surgir. Primeiro, a casa ficou mais clara e espaçosa porque me desfiz de muitas coisas que não tinham mais sentido. 
Comecei a colecionar as primeiras vezes e a vida foi mudando. A escrita me lançou para o mundo como autora e não tinha mais volta. Os caminhos foram se escancarando. Voltei a trabalhar como jornalista presencialmente, perto dos meus amores maiores: o Mara Hope e a Ponte dos Ingleses. 

 

Fiz uma nova lista de metas, mais subjetiva e colei no meu caderno desse ano. Quero rever mais meus amigos e familiares. Sair com meus filhos e apresentar o que sei de Fortaleza para eles, conhecer o novo e experimentar a surpresa juntos, experimentar o frio na barriga de arriscar o novo.  Não quero mais economizar o tempo de vida que me resta. Eu não sei quando irei partir, preciso aproveitar melhor, me importar menos com a opinião dos outros. Ver o dia nascer e terminar, com aquele colorido único. Sentir o sal do mar queimando minha pele e os meus lábios. Beijar e dizer que amo. Se não houver eco, a gente junta os cacos do coração e continua a vida.  

 

Quero um 2024 assim, merecer os novos 365 dias que irei ganhar. Sorver cada segundo, sem economizar nos afetos, nem na esperança. Deixo o cinza do passado junto com as roupas que não me cabem mais. Sou outra. Meu casulo se abriu.

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